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quinta-feira, 21 de abril de 2011

O “Homem de Papel” (Final)

Chegou o ano de 1934 e a segunda edição da Copa do Mundo, dessa feita na Itália. Os austríacos eram considerados os grandes favoritos. E o time começou bem, vencendo a França nas oitavas de final por 2 X 1, com um gol de Sindelar, e a Hungria nas quartas de final, também por 2 X 1. Na semifinal a Áustria pegou a Itália, a quem tinha vencido há pouco tempo, dentro de Roma, por 2 X 1.

Mas dessa vez foi diferente. O ditador Benito Mussolini fazia de tudo para a Itália vencer a Copa. Contam que o juiz sueco Ivan Eklind, jantou com Mussolini uns dias antes. E o cardápio deve ter sido ótimo, porque durante o jogo ele fez de tudo para ajudar os italianos. Não via uma falta a favor dos austríacos e não marcou um pênalti claro em cima de Sindelar. A Itália se classificou para a final e o sueco foi novamente escolhido para dirigir o jogo. E a Itália ganhou na prorrogação.

Sindelar apanhou tanto no jogo contra a Itália, que não conseguiu participar da decisão do terceiro lugar, quando os austríacos perderam para a Alemanha, por 3 X 2. Nesse jogo, como as duas seleções tinham camisas iguais, a Áustria teve de usar o uniforme do Nápoli.

A Áustria se classificou bem para a Copa de 1938, na França. Mas, no dia 12 de março de 1938, o país foi anexado pela Alemanha. Ou seja, a Áustria sumiu do mapa. Faltavam aproximadamente três meses para o Mundial. A invasão da Áustria pelo exército alemão significou o fim temporário do futebol austríaco. Apenas dois meses depois, todos os contratos de jogadores profissionais foram dissolvidos e os clubes judeus, entre eles o Áustria Viena, foram proibidos.

O "Wunderteam" (Time Maravilha), como era conhecida a fabulosa seleção austríaca dirigida por Hugo Meisl, foi obrigada a se fundir com a seleção alemã. Dali em diante os jogadores austríacos teriam que jogar pela seleção da Alemanha.

Nessa época, Sindelar havia comprado uma cafeteria para ter uma segunda renda e passou a se recusar a defender a seleção nacional do Império Alemão, embora tenha sido várias vezes convocado pelo técnico Sepp Herberger.

Sempre dizia que estava machucado. Foi quando a Gestapo (Polícia Secreta do Estado) começou a investigar o jogador, e descobriu que ele era amigo de judeus, e simpatizante dos comunistas. Se isso já era ruim, o pior veio na partida para festejar a anexação. Havia no ar a sensação de que os austríacos poderiam vencer. Poderia ser perigoso para a saúde dos jogadores.

Por sugestão de Sindelar a Áustria jogou com camisas e meias vermelhas e calções brancos, as cores nacionais. E os austríacos dominavam a partida com facilidade, mas propositalmente perdiam incríveis chances de gol. Era uma humilhação, mas não podiam desafiar os alemães. Havia sido combinado que o resultado do jogo seria um empate.

O jogo ficou naquele chove e não molha até o meio do segundo tempo, quando o público começou a vaiar. Foi nesse momento que os jogadores austríacos decidiram desafiar os alemães e começaram a correr feito loucos. O jogo virou uma guerra. Logo depois, a bola sobrou para Sindelar na meia lua. Ele deu um toque sutil, encobrindo o goleiro que estava adiantado.

O público delirou, ainda mais quando o craque foi até a tribuna de honra onde estavam as autoridades nazistas, e dançou uns passos de “Rheinland Pfalz”, uma dança popular austríaca. Foi uma gargalhada geral em cima das autoridades alemãs. Depois disso, cheios de brio os austríacos ainda marcaram mais um gol, deixando o placar final em 2 X 0. O nazismo perdia ali, o primeiro embate onde tentava utilizar o futebol como instrumento de imposição e fortalecimento do regime.

No dia 26 de dezembro de 1938, Sindelar disputou a sua última partida pelo Áustria Viena, que havia sido obrigado a mudar de nome para SC Ostmark Viena. O "Homem de Papel" marcou o último gol da sua brilhante carreira no empate em 2 X 2 contra o Hertha Berlim.

Sindelar nunca serviu aos alemães nazistas e foi encontrado morto junto com sua namorada no início de 1939. A sua morte é até hoje um enorme mistério. Conta-se que na madrugada de 23 de Janeiro de 1939 recebeu um telefonema da sua companheira Camila Castagnola, uma prostituta italiana radicada em Viena. Sindelar encontrava-se reunido com alguns colegas de profissão num café da capital.

O “homem de papel” dirigiu-se então para a Rua Anna, morada de Camila, e de lá não voltou a sair. Os amigos estranharam a sua ausência no café pela manhã desse dia 23, e um deles que havia visto Matthias entrar na casa da sua amante, resolveu fazer uma visita ao local. E lá chegando encontrou os dois amantes estendidos no chão com uma garrafa de conhaque e dois copos. Sindelar estava morto e Camila a seu lado desacordada. Nunca mais saiu do coma. Os documentos da investigação policial desapareceram.

A autópsia revelou intoxicação por óxido de carbono, porém outras teorias foram levantadas, como a de suicídio, diziam que Sindelar abrira as torneiras do gás quando pressentiu que as tropas de Hitler avançavam a caminho de Viena. Tinha 36 anos, e Viena chorou a morte de um homem que anos mais tarde se saberia que nem judeu era.

Seu enterro reuniu cerca de 20 mil pessoas e transformou-se em demonstração de repúdio ao III Reich. Recentemente, Sindelar foi eleito pelo povo austríaco o maior jogador do país do século XX. Seu legado é um exemplo de dignidade e jogo limpo tanto nos gramados quanto na vida.

O seu enterro foi debaixo de fortes medidas de segurança porque se temia uma rebelião dos assistentes. Em Viena hoje existe a "Sindelarstrasse", rua do rebelde goleador onde soam os ecos do poema dedicado a ele pelo austríaco Friedrich Torberg:

"Jogava futebol como ninguém;
Tinha graça e fantasia;
Tinha um toque fácil e alegre;
sempre jogava e nunca lutava"

Matthias Sindelar foi enterrado no Cemitério Central de Viena, o mesmo onde estão Brahms, Beethoven, Schubert, Johann Strauss e Johann Strauss Jr., dentre outros. A sua tumba fica perto da de Beethoven. Um lugar apropriado para o “Mozart do futebol”, como também era chamado. Até hoje é realizada anualmente no dia da sua morte uma cerimônia fúnebre. (Pesquisa: Nilo Dias)

Sindelar com a camisa da seleção austríaca. (Foto: Divulgação)