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terça-feira, 8 de novembro de 2011

O último dos capitães (I)

Obdulio Jacinto Muiño Varela, ou simplesmente Obdulio Varela, nasceu em 1917 em Montevidéo, Uruguai. Foi criado em um bairro humilde e estudou apenas até o terceiro ano. Na infância enfrentou problemas de asma e era filho de pais separados. Ganhou as suas primeiras moedas aos oito anos como vendedor de jornais. "Os diários só têm duas coisas verdadeiras: o preço e a data", costumava dizer.

Começou a jogar futebol em peladas nos campos do bairro onde morava. Depois foi jogar no Club Deportivo Juventud, onde exibiu um temperamento vigoroso e começou a se destacar como centromédio.

Em 1937 foi contratado como jogador semiprofissional do legendário Club Montevidéo Wanderers. Em 1943 teve seu passe adquirido pelo Club Atlético Peñarol, onde permaneceu até 1955. Debutou no selecionado uruguaio em 1939 e em 1942 se sagrou campeão sulamericano.

Obdulio Varela foi um dos jogadores mais emblemáticos da história da Copa do Mundo da FIFA. O inesquecível meio-campista vestiu a camisa celeste em mais de 57 partidas, a mais famosa delas no Maracanã no dia 16 de julho de 1950. Naquela tarde, com a inesperada obtenção do título mundial, nasceu uma verdadeira lenda, que sobreviveu à morte física do grande capitão no dia 2 de agosto de 1996.

Naquela competição, o centromédio aguerrido e com voz de comando foi vital mesmo sem marcar nenhum gol na histórica decisão diante dos brasileiros. Como líder em campo, com a faixa no braço, assumiu a responsabilidade de administrar psicologicamente uma das finais mais surpreendentes da história.

A história é bem conhecida. O Brasil organizou a Copa do Mundo da FIFA 1950 com um único objetivo: erguer o troféu no Maracanã. Um empate bastaria ao selecionado do técnico Flávio Costa diante de um elenco uruguaio que, para muitos, não passaria de um “sparring”.

Antes dos uruguaios entrarem em campo para a grande final contra o Brasil, um de seus dirigentes foi até o vestiário e disse aos jogadores que "perdiendo por menos de cuatro goles de diferencia se salvaba el honor". Rápidamente Obdulio Varela respondeu com verdadeira autoridade: “Perder?... Nosotros vamos a ganar este partido!"

"Não pensem em toda essa gente, não olhem para cima", aconselhou os colegas já no túnel, consciente de que havia mais de 170 mil pessoas no estádio. "A partida é jogada aqui embaixo, e se ganharmos não vai ter problema nenhum. Nunca teve problema nenhum. Quem está fora não joga."

A conversa motivadora rendeu frutos até os dois minutos do segundo tempo, quando Friaça abriu o marcador para delírio da torcida brasileira. A história já parecia escrita para todos, menos para o capitão. "Quando fizeram o gol, Varela correu 30 metros para pegar a bola e pedir um impedimento inexistente ao juiz", recordava o também falecido Roque Máspoli, o goleiro uruguaio naquela tarde.

Anos depois, em uma das suas poucas entrevistas, o capitão explicou os motivos de tanto teatro. "Sabia que, se não esfriasse a partida, iriam nos demolir. Queria retardar o reinício da partida, nada mais. Levei a discussão ao extremo, até tiveram de chamar um intérprete para que eu pudesse dialogar com o árbitro. O estádio ficou em silêncio, e então vi que poderíamos ganhar a partida."

Dito e feito: o Uruguai cresceu no jogo, Varela passou a mandar na meia-cancha e Juan Schiaffino e Alcides Ghiggia, nos minutos finais, balançaram as redes para virarem o placar. A "Celeste" era bicampeã contra todos os prognósticos.

Obdulio Varela recebeu o troféu das mãos do presidente da FIFA, Jules Rimet, em um encerramento insólito, sem cerimônia de entrega nem discursos oficiais. As comemorações dos uruguaios à noite tiveram uma particularidade: Varela decidiu sair para se misturar com os torcedores brasileiros nas ruas.

"A tristeza de todos era tanta que terminei sentado em um bar bebendo com eles", relembrou. "Quando me reconheceram, pensei que iriam me matar. Felizmente foi tudo o contrário, me parabenizaram e ficamos bebendo juntos."

Depois de algumas cervejas, “El Negro Jefe” foi chamado pelo dono do bar. Havia um torcedor brasileiro que queria falar com ele. Varela se levantou preparado para o pior: um xingamento, uma agressão. O torcedor se aproximou, encarou-o olho a olho, abraçou-o e desabou num choro desesperado e convulsivo. Conta a lenda, ainda, que o capitão uruguaio consolou esse torcedor durante mais de meia hora.

Muito tempo depois, numa entrevista, Varela diria que nesse momento, com o torcedor brasileiro chorando em seu peito, ele se havia dado conta da dimensão daquela derrota para o Brasil. Também teria afirmado que se soubesse que aconteceria tal tragédia nacional, ele não teria se esforçado tanto para ganhar, pois, afinal de contas, só os cartolas uruguaios lucraram com aquela vitória. Varela regressou ao hotel ao amanhecer e se sentiu aliviado.

Quatro anos mais tarde, completou a sua participação com o quarto lugar no Mundial da Suíça, em 1954. Com ele em campo, a “Celeste” não perdeu nenhuma partida pela competição máxima do futebol mundial.

E como era Obdulio Varela do ponto de vista técnico? Jogava na posição que hoje é chamada de volante, mas que naquela época se designava como "center hallf". Era um jogador não mais que aceitável, ou apenas bom. Não era muito veloz ao correr, e pouco corpulento, dominava os recursos técnicos dentro do que se poderia esperar normalmente de um jogador de primeira divisão. E nada mais. Nesse aspecto não se sobressaia.

E quando foi o momento em que se converteu em um personagem futebolístico que chegou a transcender através da história esportiva do mundo? Em sua personalidade, quando ganhou o apelido de "Negro Jefe".

Sem gritos e sem histeria sabia como conduzir com severidade aos seus companheiros de equipe, quando estes não faziam as coisas como deviam. Bastavam umas poucas palavras e talvez uma olhada cheia de rigor como a de um pai severo com seus filhos, para dar-se conta que teria de ter mais empenho no jogo.

Dessa forma passou a ser respeitado até pelos adversários, que sabiam que “com esse "gran negro" não era conveniente buscar problemas. Obdulio Varela foi um jogador do tipo correto, sempre foi defensor do jogo limpo, sem brutalidade.

Em certa ocasião como capitão do Peñarol, um adversário cometeu uma falta grosseira em um de seus companheiros, o que deveria ter sido punido com expulsão. Mas de forma equivocada e surpreendente, o juiz marcou a falta como se fosse comum, uma contingência do jogo.

Obdulio Varela de imediato pegou a bola, se dirigiu ao juiz e de maneira respeitosa observou que se em algum momento qualquer jogador de sua equipe, cometesse tamanha brutalidade ele pediria por favor que o expulsasse de campo, visto que como capitão, não poderia tolerar que um de seus capitaneados realizasse semelhante ato tão desleal.

Entretanto, a laureada carreira acabou não influindo no seu estilo de vida. Pelo contrário, assim como ocorreu com outros grandes ídolos da época, Obdulio Varela nunca desfrutou dos louros do sucesso. Assim como Garrincha, Varela pertenceu à lista dos jogadores fora de série que nasceram, cresceram e morreram na pobreza. (Pesquisa: Nilo Dias)