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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A vergonha de Oruro


Quem acredita em Justiça? Muito pouca gente. Motivos são raros para que se acredite nisso. Basta lembrar a morte do menino Kevin Beltrán Espada, de apenas 14 anos de idade, ocorrida em 20 de fevereiro do ano passado, num jogo de futebol no Estádio Jesús Bermudes, em Oruro, Bolívia, valendo pela “Taça Libertadores da América”.

O menino teve sua vida ceifada pela irresponsabilidade de alguns delinquentes que se dizem torcedores do Corinthians Paulista, pertencentes a torcida organizada “Gaviões da Fiel”, que jogaram um sinalizador naval em direção a torcida do San José, time adversário.

Na ocasião 12 corinthianos foram presos pela Polícia boliviana e mantidos em cárcere por seis meses e depois colocados em liberdade. Com certeza nem todos os 12 eram culpados, mas também não se pode afirmar que a totalidade era inocente. Pelo menos dois deles tinham pólvora nas mãos, e ajudaram a colocar o sinalizador para dentro do estádio, o que também se configura como crime.

Tanto é verdade que no retorno ao Brasil alguns deles se envolveram em brigas em estádios e na recente invasão do Centro de Treinamento do próprio Corinthians. No Brasil, houve uma tentativa fraudulenta de colocar em um “laranja”, menor de idade, a responsabilidade pelo crime. E o processo no Brasil acabou arquivado o ano passado.

Agora, que o menor completou 18 anos, seu nome foi revelado. Trata-se de Hélder Alves Martins, que vive em liberdade no Brasil, já que seu processo foi arquivado. Atualmente trabalha em uma rede de cinemas e pretende fazer vestibular para Engenharia Macatrônica.

Ele não vai mais aos jogos do Corinthians e nem à quadra da uniformizada, já que foi acusado de ter levado os sinalizadores para Oruro, sem autorização da diretoria.

O próprio clube paulista, que merecia uma punição rigorosa e não sofreu, se colocou ao lado da bandidagem, dizem que até pagando advogados e conseguindo toda uma pressão política. A única coisa que queriam era tirar logo da Bolívia os 12 torcedores e trazê-los para o Brasil.

Existem fortes indícios de que o processo foi uma farsa. Na época da morte de Kevin, Roger Pinto Molina, senador de oposição na Bolívia, estava refugiado na embaixada brasileira. Durante o processo, cogitou-se que a intervenção direta dos dois governos em ambos os casos sugeririam uma troca de favores.

No fim, o político deixou a Bolívia de maneira clandestina, autorizado pelo ministro Eduardo Saboia, o mesmo que negociou a libertação dos 12 corintianos.

Além disso, o caso foi acompanhado de perto por autoridades de peso. Mário Gobbi, presidente do Corinthians, reuniu-se com dois ministros de Dilma para pedir ajuda. Depois da soltura dos brasileiros, Evo Morales, presidente boliviano, admitiu que teve influência no desfecho do caso.

Tivesse esse caso ocorrido na Europa, o Corinthians, com certeza, ficaria anos a fio excluído de qualquer competição esportiva de caráter internacional. A punição no Brasil se resumiu a um jogo com portões fechados e a devolução dos valores dos ingressos vendidos antecipadamente. Vergonha.

Só restou a dor de uma família atingida pela tragédia. Limbert Beltrán, um professor de classe média, pai de Kevin tem motivos de sobra para não acreditar mais em Justiça. Ele até que tentou levar o caso adiante, mas estava sozinho, ninguém o ajudou a continuar um processo fora do seu país. Limbert guarda a mágoa em dose dupla: ter perdido o filho e não ter conseguido justiça.

Logo após a tragédia ocorreram os discursos de sempre, que logo ali são esquecidos. Jogo para a platéia. O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin, prometeu ajuda, colaboração à família. E o que fez depois? Nada, absolutamente nada.

E o presidente do Corinthians, então? Disse da boca para fora que a vida do menino morto não tinha preço, que queria ajudar com uma quantia em dinheiro. Chegou até a oferecer 200 mil dólares. Na hora de pagar havia baixado para 50 mil dólares.

Passaram-se 365 dias depois da tragédia na Bolívia, e a família de Kevin nunca viu a cor do dinheiro prometido pela Federação Boliviana de Futebol (FBF), que viria de um amistoso realizado com a Seleção Brasileira. O jogo foi realizado dia 6 de abril de 2013, o Brasil venceu por 4 X 0 e a renda somou R$ 1,087 milhão.

A FBF ficou com o total da arrecadação e prometeu doar cerca de R$ 42 mil (3,9%) aos pais de Kevin na semana seguinte ao jogo. O montante, porém, nunca foi repassado.

O próprio time do San José, da Bolívia, também não fez nada. A Conmebol usou a morte de Kevin para se promover, fazendo vista grossa para os torcedores, para as brigas e toda a violência.

Apenas duas instituições e uma pessoa ajudaram a família de Kevin, e sem fazer qualquer espetáculo ou divulgação disso. As instituições foram a do Club Bolívar, de La Paz, do Aurora, de Cochabamba, e uma pessoa do Brasil, de nome Fabiano, que, via Internet, doou 500 dólares. Só esses foram solidários.

Um ano se passou da morte de Kevin e apenas sobrou a impunidade. O sacrifício do jovem parece que de nada adiantou. Os estádios de futebol continuam dominados por multidões de delinquentes, patrocinados e protegidos por quem deveria reprimi-los, os dirigentes dos grandes clubes.

A Polícia também, teve sua parcela de culpa na tragédia, pois não revistou nenhum dos torcedores brasileiros que se acotovelavam em um dos portões do estádio. Esse foi o erro. Se tivessem feitos as revistas, ninguém teria entrado no estádio com sinalizadores.

Casa arrombada, tranca de ferro. Depois da morte de Kevin, uma nova lei foi implantada na Bolívia, proibindo o uso de artigos pirotécnicos em estádios de futebol. Mas a Conmebol nada fez no sentido de garantir mais segurança nos jogos que promove.

A falta de sensibilidade é tão grande, que o ano passado o presidente corinthiano, Mário Gobbi, ofereceu simbolicamente aos 12 torcedores presos em Oruro, o título de campeão paulista.

E pior. O que o presidente corinthiano falou, e saiu na imprensa, "que a grande lição dessa história toda, o mais doloroso foi 12 torcedores ficarem injustamente presos na Bolívia, e não a morte do garoto". Mário Gobbi desprezou a vida de um jovem de 14 anos que tinha um bom futuro pela frente e que respeitava todas as regras da sociedade.

Depois disso, nada mais restou ao pai do menino morto, do que questionar a dignidade de Gobbi, que desrespeitou à sua família. Fica guardada a indignação de Limbert Beltrán, que disse em alto e bom som:

“Quando penso nesse indivíduo, eu penso em alguém que está mergulhado em dinheiro, mas tem muita carência de valores e sentimentos. Acho que ele não tem filhos. Vou esperar que ele um dia tenha consciência moral e mude sua opinião. Que ele reflita sobre o assunto com o tempo. E que a família dele nunca sofra o que os seus “queridos” torcedores provocaram à nossa família”.

Aliás, cinco dos “queridos” torcedores protegidos por Mário Gobbi, depois de soltos na Bolívia e de volta ao Brasil, já foram protagonistas de cenas nada louváveis: três deles, Cleuter Barreto Barros, Leandro Silva de Oliveira e Fábio Neves Domingos, brigaram com torcedores do Vasco e com a Polícia Militar, em agosto do ano passado, em jogo do “Brasileirão”, realizado no Estádio Nacional de Brasília..

Outro dos “mártires” de Oruro, Tiago Aurélio dos Santos Ferreira foi preso hoje, depois de ter-se envolvido na invasão ao CT Joaquim Grava, no dia 2 de fevereiro, que teve agressões, inclusive ao atacante Guerrero, quebra-quebra, vômitos e cervejada.

Quem está preso há mais tempo é Raphael Machado Castilho Araújo, que foi detido por ter fugido de uma blitz e atirado contra policiais na Bahia. Ele ainda estava usando uma moto roubada. O corintiano foi baleado e teve que ser internado, mas escapou da morte. “Anjinhos”. (Pesquisa: Nilo Dias)

Torcedores corinthianos estiveram presos por seis meses em Oruro. Na volta ao Brasil, alguns deles se envolveram em brigas e desordens. (Foto: Divulgação)

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