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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Hilda Furacão e Paulinho Valentim

Morreu hoje aos 84 anos de idade, no Asilo Guillermo Rawson, em Buenos Aires, Argentina, onde morava há vários anos, Hilda Maia Valentim, também conhecida por “Hilda Furacão”.

Segundo a assistente social que a acompanhava, Hilda sofria de problemas respiratórios e renais, mas morreu de "morte natural". Era natural de Recife, onde nasceu no dia 30 de dezembro de 1930.

Ainda muito pequena foi morar com a família em Belo Horizonte. Na juventude, tornou-se famosa, em seu meio, como a prostituta "Hilda Furacão". O nome se deveu a sua reputação de mulher “braba”, que brigava por quase nada com seus clientes e colegas.

Ela ficou famosa ao virar personagem do livro “Hilda Furacão”, de autoria do escritor Roberto Drummond, falecido em 2002, que virou minissérie, da TV Globo, exibida em 1998, com Ana Paula Arósio no papel principal.

O romance de Hilda com Paulo Valentim teve início na Belo Horizonte dos anos 1950, quando o jogador atuava pelo Atlético Mineiro, junto de outros craques famosos como “Kafunga”, “Mão de Onça”, Murilo e Haroldo. Boêmio inveterado, Paulo Valentim gostava de frequentar casas de prostituição na capital mineira.

Foi no “Hotel Maravilhoso”, na rua Guaicurus, que o ponteiro-direito e “Hilda Furacão” se conheceram. Quase todos os dias, após os treinos e jogos, Paulinho, como era carinhosamente chamado pelos companheiros de time, tomava o rumo dos bares da zona boêmia.

Certa noite, depois de beber algumas cervejas na mesa com Hilda, foi até o quarto dela, encantando-se com seus carinhos, passando a procura-la sempre que tinha oportunidade. Nos primeiros tempos até que não era ciumento, tanto que ficava jogando cartas e bebendo, esperando que ela ficasse disponível para ele

Passado algum tempo as coisas mudaram. Suas costumeiras bebedeiras quase sempre acabavam em brigas. Passou a ter um ciúme doentio da amante, tanto que além de bater naqueles que via como rivais, quebrava tudo o que via pela frente  nos botecos. 

É claro que os dirigentes do Atlético não estavam gostando nada disso. Tanto é verdade que virou um problema. Foi por isso que o “Galo” o vendeu para o Botafogo, em 1957. O alvinegro carioca era treinado por João Saldanha e tinha no elenco “feras” como Didi, Garrincha, Amarildo, Nilton Santos e Zagallo.

Paulo Valentim foi para o Rio de Janeiro, mas seu pensamento não sai de Belo Horizonte, na zona boêmia, em que “Hilda Furacão” residia. Volta e meia o craque dava uma escapada de “General Severiano” e ia de ônibus se encontrar com a amada.

Muitas foram as vezes em que atrasou o retorno ao Rio de Janeiro, o que obrigava algum dirigente do time carioca viajar até Belo Horizonte para buscá-lo e o levar de volta, quase à força.

A paixão tomou conta dele por inteiro, tanto que não conseguia mais longe de Hilda. Foi por isso que tomou a decisão de pedi-la em casamento e leva-la para sua cidade natal, Barra do Piraí (RJ). Um dos padrinhos de casamento foi o técnico João Saldanha. Em meio a cerimônia, o padre ficou sabendo do passado pouco recomendável da noiva e resolveu dar-lhe uma descompostura. Fez um sermão, aconselhando-a a largar a chamada “vida fácil”.

Foi o que bastou para Paulo Valentim enfurecer e partir sobre o padre. Ele não admitia que que alguém falasse no passado de sua mulher. Não fosse a turma do “deixa disso”, entre os quais se encontrava João Saldanha, o padre teria levado uma tremenda surra.

Apesar de tudo, a carreira futebolística de Paulo Valentim foi vitoriosa. Conseguiu chegar à Seleção Brasileira. Em 1959, num jogo frente o Uruguai, pelo Campeonato Sul-Americano disputado na Argentina, aconteceu uma briga generalizada, ainda no primeiro tempo.

Eu lembro desse jogo. Já morávamos em Pelotas e eu escutei tudo pelo rádio. Paulo Valentim, segundo contam, é claro, com algum exagero, sozinho, bateu em todo o time uruguaio.

O Brasil ganhou por 3 X 1, de virada. No outro dia as manchetes dos jornais falavam mais sobre a briga, do que o resultado do jogo. Os argentinos colocaram Paulo Valentim nas alturas. O Boca Juniors passou a se interessar por ele, e o comprou por uma verdadeira fortuna.

Vestindo a camisa azul e amarela do time de “La Bombonera” virou herói. Graças aos seus gols o Boca Juniors ganhou os títulos nacionais de 1962 e 1964.

Paulo Valentim e Hilda ostentavam uma vida de luxo em Buenos Aires. O apartamento em que moravam era alugado pelo Boca Juniors e tinha até paredes cobertas de veludo. O carro do casal era um “Impala”, presente do clube.

Era comum ver o casal nos melhores restaurantes. Tudo corria bem para eles. Veio o primeiro filho, Ulisses, que foi alfabetizado em espanhol. Com o decorrer dos jogos a fama de Paulinho só fez crescer. Era respeitado pelos colegas de clube, que faziam questão de sair com o casal.

Mas nada é eterno. Valentim voltou a beber, e isso teve influência no seu rendimento dentro de campo. O futebol já não era mais o mesmo, por isso o Boca concordou que ele se transferisse para o São Paulo.

Viajou para a capital paulista sem a mulher, que ficou em Buenos Aires cuidando da casa e do filho, Ulisses. A passagem pelo tricolor paulista foi curta. Menos de um ano.

Como tinha criado fama pelos bons tempos de artilheiro, especialmente na América Latina, acabou indo para o Atlante, da Cidade do México. Hilda foi com ele. Tinha esperança de que os bons tempos, os carros de luxo, casa boa e comida farta voltassem.

Ledo engano, Valentim estava velho. Nos dois anos em que esteve lá não conseguiu jogar como antes. Começaram as reclamações dos torcedores. O futebol parecia tê-lo abandonado. O Atlante não o quis mais. Valentim voltou para Buenos Aires bem pior do que saiu. Estava tomado pelo vicio do álcool.

O Boca Juniors continuou a lhe pagar a moradia, mas agora uma casa pequena, sem o luxo de antes. E um emprego de técnico das divisões de base. Tudo mudou, era outra vida bem diferente daquela dos tempos de fama. Hilda dava atenção ao filho, enquanto Valentim tentava fazer dele um jogador. Ele estava no time infantil, mas não tinha o futebol esperado.

Dispensado do Boca Juniors, a vida piorou. Além da bebida passou também a jogar cartas. Ainda bem que o filho Ulisses já trabalhava e passou a ajudar a família, que morava em casas emprestadas, geralmente por pessoas ligadas ao Boca, que nunca abandonaram o ídolo.

Em 9 de julho de 1984, Paulo Valentim deixou este mundo, em consequência da bebida. O Boca Juniors bancou o sepultamento no “Cemitério de Chacaritas”. Apesar do tempo sem jogar, não foi esquecido pela torcida que compareceu em peso a um dos maiores funerais da história de Buenos Aires.

O Boca Juniors ainda o eternizou, ao mandar construir no Estádio de “La Bombonera”, uma “estrela em bronze”, homenageando o grande ídolo.

Com a morte de Paulinho, Hilda passou a depender unicamente do filho, Ulissses, que mostrava grande dedicação a mãe. Mas como não há nada que não possa ficar pior, Ulisses descobriu que estava com diabetes. Arrasado, tentou o suicídio tomando fungicidas.

Nos momentos de angústia, chegou a escrever uma carta à companheira, Teresa Ignes Rodríguez, pedindo desculpas pelas vezes que a traiu. E a sua mãe, a quem reiterava a paixão, o amor. Mas ele sobreviveu.

Em 2013, a diabetes acabou matando Ulisses. Outra vez foi o Boca Juniors quem ajudou Hilda. O clube soube reverenciar o nome de um ídolo, não o abandonando e nem a família em momento algum. Gestos nobres de seus dirigentes.

Depois da morte do marido e do filho, Hilda Maia Valentim passou a viver amparada pela municipalidade de Buenos Aires, interna no “Hogar Dr. Guillermo Rowson”, onde foi localizada pelo jornalista Ivan Drummond, do jornal “O Estado de Minas”, sobrinho do escritor Roberto Drummond.

Uma assistente social brasileira ajudou Ivan a elucidar a história da paciente. Em agosto de 2014, a reportagem do “Fantástico”, da Rede globo, foi até o asilo e conversou com Hilda, que na época estava com 83 anos.

Já não era mais nem sombra da mulher que o imaginário de leitores e telespectadores brasileiros criou e que atravessou décadas. A “Hilda Furacão”, criada por Roberto Drummond, era apenas uma triste lembrança.

Dos tempos de riqueza não lembrava mais. E muito pouco da Belo Horizonte de seu tempo. Alimentava mágoas de parentes do marido. No asilo onde vivia, Hilda alternava estados de lucidez e de esquecimento. (Pesquisa: Nilo Dias)

Hilda e Paulinho Valentim.